Brinquedoteca, por Rafael Ribeiro
Estas imagens fazem parte de uma série extraída de um vídeo feito por alunos da Brinquedoteca do Iserj. Trata-se de um primeiro contato entre a criança e a câmera, por isso não há obediência a preceitos técnicos. "Vamos fazer um filme" é a palavra de ordem e a experiência acontece.
1.Ao final, a câmera aquieta-se um pouco; encontra uma ação.
2. Cinema é testemunho.
3. "Aí, vou filmar. Quem quer ser filmado?"
4. "A câmera é de verdade". Documenta.
5. Para ser filmado, fazer alguma coisa. Áudio não se vê, a fala é livre.
6. Cinema são caras e bocas. É sucessão de imagens mas "pára um momento!".
7. Quem é o protagonista? O que vale a pena filmar? Um lugar de "consertaria". Depois de fazer, ver o filme! Desligar a máquina!!
O vídeo feito pelo aluno Rafael Ribeiro na brinquedoteca não havia
despertado minha atenção até começar uma reflexão com professores dos anos
iniciais do E. Fundamental sobre a observação do brincar livre naquele espaço quando
alguns colegas questionavam a dificuldade de observar o que chamavam uma grande confusão!
Em nossos encontros de professores da educação infantil e anos iniciais
do EF vimos tentando olhar para este pensamento que é imaginação, tanto para
sua negligência no contexto escolar como para a importância de se refletir
sobre esta capacidade e suas implicações no desenvolvimento pleno de nossa
humanidade. Quando conversamos sobre a observação atenta do brincar e da
capacidade imaginativa é recorrente a questão levantada sobre a serventia ou objetividade da
brincadeira, especialmente a de faz de conta. E aí surge também a questão sobre
a necessidade de ter olhos para ver o que acontece na brincadeira: “eu não
vejo nada, só uma confusão”; “tiram tudo do lugar, devia brincar com uma coisa
de cada vez”; “é verdade que eles inventam muito, é cada história”. A partir
desse último comentário trouxe a ideia de tentarmos perceber as histórias que
as crianças criavam nessa confusão, compartilhando nossas observações. Comecei
trazendo um registro do meu diário de campo:
Todas as tampinhas de
refrigerante precisavam entrar pelo buraco do engradado que até então era o
carro que transportou o cenário e agora é caixa eletrônica. O urso grande até
então guarda do banco virou sofá quando chegam a casa para contar o dinheiro.
Um menino vai ao tanque com as tampinhas, ouviu dizer que é preciso lavar o
dinheiro para ele valer! Fazem agora planos se continuam na escola ou não e
decidem construir uma escola só deles, onde ninguém os incomode. As
tampinhas/dinheiro são agora chaves para entrar no grupo, só as vermelhas,
nosso código, dizem. Nesse momento um dos meninos anuncia que vai ser candidato
a prefeito, mas só se uma das meninas quiser casar com ele. Todos vão saber a
resposta...
Essas brincadeiras acontecem a toda hora, em meio a cambalhotas, chutes
a gol ou uma volta de bicicleta, como parte de um grande contexto de
brincadeiras de representação de papéis, nosso “teatro infantil”. Como ter
olhos para ver e descobrir para que serve é nosso desafio. Fui puxando esse fio
inspirada nas ideias principalmente de Walter Benjamin sobre o teatro infantil
como jogo. Em seu programa de um teatro infantil proletário, Benjamin (2002)
diz que não é a propaganda de ideias que atua de maneira verdadeiramente
revolucionária ... de maneira
verdadeiramente revolucionária atua o sinal secreto do vindouro, o qual fala
pelo gesto infantil (p. 119). Neste, chama atenção para a improvisação que
deve predominar no teatro infantil, feito pelas crianças onde o que importa é menos a encenação do que as tensões que se
resolvem em tais encenações (idem, p. 114).
Nesse exercício de coletividade e criação das crianças, segundo o autor,
o gesto é sinal de seu mundo próprio, devendo atuar sobre os adultos como
poderosas forças educativas de renovação e atualização. Aqui as crianças nos
ajudam a ver e desenvolver uma observação não para corrigir, mas para
compreender, pois novas forças, novas
inervações vêm à luz, das quais frequentemente o diretor jamais teve qualquer
vislumbre durante o trabalho (idem, p. 118). Forças que emergem, diz Benjamin,
da liberdade da fantasia infantil, ali onde sua infância realiza-se no jogo. No
jogo lúdico aqui ensejado, como no teatro arte infantil, a eternidade do
produto dá lugar ao instante do gesto, revelando sua dimensão política no fogo
que aproxima realidade e jogo, arte e vida, onde teoria e prática se unem para
fazer coisas, e brincar.
Para Saló e Barbuy (1977), minha inspiração primeira na arte de educar,
a pedagogia é preparação para a sobrevivência! Saber olhar, escutar, esperar...
enfrentar a noite, a ausência, a morte, multiplicar a energia, controlar o
impulso... saber voltar ao ponto zero... involuir. Em um de seus mais belos
fragmentos diz: ... antes de aprender o
idioma... a linguagem criada com sons, formas, cores e gestos, permite a
comunicação total, direta, profunda e exata (p. 15). Como diz a poesia de
Manoel de Barros (2001) desinventar
objetos... usar algumas palavras que ainda não tenham idioma (p. 11). Olhar
a infância como o nascimento da linguagem, como o novo que vem povoar o
discurso pela primeira vez, encontrar o fazer poético que os poetas perseguem
buscando a criança que nos habita nesse lugar.
O vídeo do Rafael me levou novamente a esse lugar, ainda que estivesse
todo dia na brinquedoteca, ele me mostrou algo que somente seu olhar podia dar
a ver. Rafael insistiu que trouxesse uma câmera que funcionasse (na
brinquedoteca há muitas quebradas para brincar) pois precisava fazer um filme
dos animais e tinha que ser de verdade. Ele é um aluno que já repetiu dois anos
o ciclo da primeira etapa do Ensino Fundamental, e que nessa época na 2ª série ainda
não lia ou reconhecia as letras e números, não articulava corretamente as
palavras, com uma história de vida muito penosa. Quando trouxe finalmente minha
câmera para ele, passou uma hora a filmar os colegas e as brincadeiras: dizia
aos outros a ação desejada, é filme gente
tem que fazer alguma coisa, dizia; entrevistou crianças enquadrando bem a
câmera nesse momento e, ao final da filmagem, quis ver na máquina o que tinha
feito. Fiquei animada com a ideia de fazer com ele um roteiro e dar
continuidade aos filmes, levei-o depois para o Laboratório Multimídia de nossa escola, mas Rafael
não quis editar nada de seu vídeo. Não somente ele como outras crianças que
pediram a máquina de verdade e fizeram filmes nos encontros seguintes não se
interessaram espontaneamente por isso, vinculando-se a outros interesses.
Queríamos desafiá-los para esta nova experiência mas tendo o cuidado de
pensar que a encenação se contrapõe ao treinamento educativo como libertação
radical do jogo, num processo que o adulto pode tão somente observar, como pontua
Benjamin (2002, p. 117). Nessas encenações, nos diz ele, as crianças ensinam e
educam atentos educadores:
novas forças vem à luz, das
quais frequentemente o diretor jamais teve qualquer vislumbre...ele vem a
conhece-las somente nessa selvagem libertação da fantasia infantil. Crianças
que fizeram teatro dessa maneira libertaram-se em tais encenações. A sua
infância realizou-se no jogo ( p. 118)
Foi assim que fiquei conhecendo a “ consertaria” da brinquedoteca, um
espaço que se desfazia magicamente quando da minha aparição ali! Seguimos com
nosso desafio refletindo que não se trata de extrair um desempenho acabado,
enchendo a prateleira de produtos cacarecos para serem piedosamente guardados,
como provoca Benjamin, mas de manter viva a ação política e seu entusiasmo. Não
o produto, mas o instante do gesto que garanta às crianças a realização, antes
de tudo de sua infância.
BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo e a
educação. São Paulo: Duas Cidades, Ed.34, 2002.
SALÓ, J. &
BARBUY, S. Terra, Ar, Água e Fogo: para
uma oficina escola inicial. Lima: editora ECE, 1978.
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Animação a partir de fotos com brinquedos de nosso acervo
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